sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Ganza narra, eu escrevo, ele tráz as imagens e completamos.



Aquele dia seria muito especial, 23 de agosto, acordamos as 04h00 da manhã, nos vestimos, tomamos um chá de coca e nos reunimos em torno do guia, que, brilhantemente, nos conduziu até aquele momento.
Seria o último trecho para atingirmos um objetivo sonhado, pensado, desenhado e seguido, passo a passo até aquele instante.
O frio era intenso, dificultava nossa caminhada, o ar rarefeito fazia com que nosso corpo ficasse mais pesado, nossos passos lentos, mas não desistiríamos agora.


Numa altitude acima de cinco mil metros , o silêncio só era quebrado pelo uivar dos ventos dos glaciares.
Faríamos, a partir daquela posição, o ataque ao cume.


Naquele instante, deixávamos para trás Chacaltaya, Condoriri e Pequeño Alpamayo.

Não posso citar aqui, Illimani, pois seria uma próxima aventura, que ainda não conseguimos concretizar, a cordilheira real andina, com seus picos nevados, terá que nos esperar.

Durante este último trajeto, ainda no escuro da noite, os pensamentos vêm e vão, me lembro a cada instante do som dos tambores tocados em Los Yungas, onde ficamos antes de enfrentar esta lendária e imponente montanha.


Eu a avistava e contemplava desde que passei por La Paz.

A aclimatação que fizemos foi perfeita e as várias paradas estratégicas nos ajudaram a chegar inteiros para este momento.

Huanya Potosi estaria abaixo de meus pés em poucas horas e eu teria escalado seus mais de seis mil metros partindo do colo de Zongo e enfrentado todas as trilhas e acampamentos gelados desta montanha.Foram alguns dias estressantes, pois, mesmo evitando a face oeste para escalarmos, sabíamos que teríamos um grau de dificuldade alto e os nossos amigos andinistas seriam fundamentais para o sucesso da escalada.


Todos em fila e lançamos o ataque, após trinta minutos de subida íngreme, deparamos com um paredão de gelo, nesse momento, as botas rígidas, os piolets curtos, a corda e os pitons de gelo fazem a diferença.Faltavam poucos metros, eu estava no final da fila, abaixo de mim somente mais três componentes do grupo. Como qualquer escalada, todos cuidam de todos, e na preocupação de acompanhar a subida dos colegas abaixo de mim, quase não percebi quando atingi o cume. Voltei-me para os rapazes que ainda subiam e os auxiliei, com as cordas, a executarem seus últimos passos em direção ao topo.Pronto, missão cumprida.Levanto-me e consigo, pela primeira vez, concentrar-me no espetáculo que encherá meus olhos pelos próximos quinze minutos.

O grupo todo ficou em silêncio, contemplando uma das paisagens mais belas da Terra.
Durante a noite, a névoa que ronda a montanha baixou sobre seu vale, forrando, com um gigantesco tapete branco, toda a volta da montanha.


Ao oeste, a noite era plena com um céu incrivelmente estrelado, enquanto que ao leste, o brilho dourado do sol começava a despontar.


Era como se estivéssemos em órbita a observar o grande planeta azul dando mais um show de beleza impar.
Senti-me egoísta ao não produzir qualquer tipo de som naquele momento, como se eu tentasse guardar para mim, até a vontade de gritar.
Meu diário de viagem estava comigo, e consegui registrar, com grande emoção, as palavras que hoje compartilho com o mundo.

Ass. Nelsinho, inspirado na narrativa de um amanhecer magico...

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Raimundo

Hoje fui visitar um amigo.
Ele já está velhinho, mas mantém suas p
ortas sempre abertas para quem quiser conversar.
Por alguns instantes, pude perceber o quanto a idade judia das pessoas, principalmente com ele, que mora ao relento, em uma grande avenida de São Paulo.

Hoje, ao conversar com ele, percebi o quanto está difícil se manter naquele lugar, mesmo assim, ele faz questão de permanecer por lá. Ele já não consegue cuidar de seus cabelos, disse que chegou a um ponto no qual não adianta mais tentar desembaraçar.
Pior é que o embaraçado cabelo, amontoado do lado direito de seu pescoço, o dificulta de realizar determinados movimentos.
Suas mãos estão trêmulas e suas palavras escritas, estão, se tornando a cada dia, mais difícil de ler.
Quando nos conhecemos, lembro-me bem, ele escrevia muito, mantinha um arquivo enorme de controle, cuidava, delicadamente, de cada assunto que dispunha em pequenos pedaços de papeis brancos.
Hoje, o seu Raimundo está cansado, mas continua disposto a escrever e permanece a maior parte dos dias, e às vezes da noite, escrevendo suas mensagens. Ao perguntar-lhe se está tudo bem, ele não reclama, diz que vive de doações, e que não pode reclamar.
Se oferecemos ajuda, ele nega, diz que tem tudo do que precisa.
Seu Raimundo de Arruda Sobrinho é esquizofrênico, seu calendário está um pouco mais avançado que o "nosso".
Hoje, ele já está em fevereiro de 2012, devidamente documentado nas ofertas me cedidas gentilmente.
Seu corpo muito debilitado, sua voz baixinha, mas, como sempre, muito lúcido no que fala, no manejo das palavras e em suas histórias de situações vividas ou "sonhadas" por ele.
Perto de suas coisas, ainda mantém uma lata de tinta de 18 litros, vazia, que é oferecida aos visitantes.
Funciona como uma pequena banqueta, permitindo que nós, visitantes, fiquemos mais confortáveis para ouvir suas histórias.
Foi uma conversa rápida, perguntei sobre sua saúde, se precisava de algum remédio ou algo para seus projetos (caneta, papel), mas só consegui saber que ele passou por uma pneumonia há pouco tempo.
E que ainda sente algumas dores nas costas.
Morando nas ruas de Sampa há quase trinta anos, e apesar de ter habilidades para se manter “saudável” morando em situação precária de infraestrutura, água e, principalmente, higiene, entendo que seja muito difícil permanecer imune a alguma doença. Sinto-me feliz cada vez que ele me oferece sua lata de tinta para sentar, pois sei que terei momentos de prazer ao ouvi-lo descrever situações fantásticas.
Criações que envolvem assuntos variados, design, cultura, psiquiatria.
Outro dia, em um assunto qualquer, ele comentou sobre psiquiatria, e falou um nome do qual eu nunca havia ouvido falar, um tal de Myra y Lopes, fui pesquisar mais tarde e descobri se tratar de um psiquiatra e escritor espanhol.
Raimundo, que é chamado de poeta por muitos que o conhecem, faz parte de uma legião de mais de cinco mil moradores de ruas de São Paulo, que tem uma história simples, mas que carrega consigo, uma grande vontade de compartilhar, seja seus escritos, seus contos, ou mesmo suas experiências como “ o condicionado”, nome que ele deu para traduzir sua condição de esquizofrênico, mas que traz, também, uma imensa carga de sabedoria.